quinta-feira, 22 de maio de 2008

O Princípio e o Fim


Um Ensaio Sobre os Limites e o Futuro do Discurso Científico


A busca por entender a realidade íntima das coisas elevou a humanidade dando-lhe a curiosidade. Na tentativa de sistematizar o conhecimento que a supriria, surgiu a ciência. Com a finalidade de divulgar este conhecimento, à medida que ele nascesse, e torná-lo acessível e atraente, nasceu o jornalismo científico. No entanto, a cada dia, ele vem se tornando mais abundante e psicodélico. Verborrágico, praticamente substituiu as escolas e universidades como a principal fonte de informação para o grande público e para atingi-lo, tem distorcido seriamente os princípios científicos. Assim, ao apresentar, sem restrições, pseudociência como se fosse ciência genuína — paradoxal e tortuosamente — ele apresenta a ciência austera, criteriosa, como construção severamente desumana. A imprensa tem afastado este público da essência da formação do conhecimento e seu real fascínio.


Mas por que a ciência estaria correndo perigo? A curiosidade é indolente e se apega facilmente a comodidades tolas. Por fim, o que a motivou em princípio, pode acabar por desencadear seu fim. Há uma invasão maciça de embustes científicos nas mídias tradicionais e principalmente na Internet que deslumbram a curiosidade. A ironia é que isso está acontecendo à medida que se estabelece uma sucessão extraordinária de progressos tecnológicos e científicos como nunca houve na história da humanidade. Parece ainda incompreensível que alguém que trabalhe diariamente com um dos mais complexos equipamentos já criados, o computador, derivado da aplicação de um volume gigantesco de descobertas da física, química e da matemática, acumuladas ao longo de muitos séculos, seja a mesma pessoa que acredita em astrologia, duendes, homeopatia, anjos, criacionismo e outras sandices do gênero. Parece que os objetos se tornaram tão intricados que se igualaram a magia aos olhos de todos —, analfabetos científicos.


Há também divulgadores científicos e professores, que se julgando senhores de toda a verdade, ignoram que a própria ciência pouco a pouco se descobre menos "científica" do que se pensava. Desconhecem que ela é mais compassiva a se aproximar dos afetos humanos do que se imaginaria. Propagam o mito de uma ciência fria, intimidando talentos, e se fechando, bloqueados de inspirar paixões voltadas a ela.


Há a necessidade de uma reconstituição — melhor dizendo —, de uma reconstrução da idéia de ciência e que seu conceito "moderno", que está vinculado ao projeto iluminista de ordem, controle e síntese, assumido impetuosamente pela tecnologia, seja substituído de forma responsável por uma percepção de prudência, coerência e plausibilidade. Na modernidade, em especial na Revolução Científica dos séculos 18 e 19, a procura por explicações sobre a natureza e a vida tornou-se a mola propulsora da sociedade. E foi justamente para atender as expectativas de uma sociedade sedenta por ter notícia desses avanços que surgiu o jornalista científico arrogando para si o direito (e o dever) de transformar conhecimento científico e tecnológico em informação de compreensão popular.


Todos reconhecem que por meio de seus rituais de descoberta, a ciência prolongou a vida, venceu doenças e ofereceu novas liberdades sexuais e comerciais. Derrubou deuses e revelou um cosmos mais complexo e espantoso do que qualquer coisa produzida pela imaginação. Mas apesar de toda sabedoria acumulada até hoje, a ciência ainda não conseguiu respostas para questões fundamentais, como a razão da existência do Universo e da própria vida. O fracasso das pretensões que o cientificismo tinha de respondê-las abre espaço para o retorno do sobrenatural na compreensão da realidade. Isso está acontecendo de forma significativa, e infelizmente os jornalistas e editores não hesitam em comprometer sua própria integridade e a de seus órgãos de comunicação ao fazerem reportagens constantes com "alternativos" e "esotéricos", dando credibilidade a estes por meio de uma linguagem sensacionalista e acrítica. Ninguém tem nada contra entretenimento e fantasia, mas a mídia deveria ser mais responsável e íntegra, marcando claramente o que é ciência e o que é crença.


Alguns cientistas devem se perguntar, atônitos, diante do vigor cada vez maior das religiões fundamentalistas em todo o mundo, se as velhas certezas terminaram por ocupar o vácuo criado pela falta de conclusões científicas quanto às grandes questões da vida cotidiana. A ciência não é muito reconfortante em momentos de morte —, imaginam.


O ser humano acredita já ter descoberto o que podia sobre os principais mistérios da natureza, como a origem do Universo no Big Bang, as propriedades da matéria e da energia determinadas pela mecânica quântica, os fundamentos do espaço e do tempo explicados pela relatividade e o desenvolvimento da vida, elucidado pelo código genético e pela teoria da evolução de Darwin. Reduz-se tudo a idéias mortas incapazes de obter um desenvolvimento para além do já conseguido. Todos se voltam à vida prática e se perguntam apenas como a ciência e o conhecimento já adquirido podem resolver seus problemas imediatos. Assim surge o empenho enfático no desenvolvimento da tecnologia, e as prioridades de pesquisa se tornam cada vez mais politizadas e demagógicas.


Mediador entre a ciência e a sociedade, o jornalismo científico foi definido como o porta-voz da fronteira do conhecimento humano. Seu objetivo era popularizar a ciência, atendendo às necessidades do cidadão de compreender como e por que as descobertas científicas e tecnológicas o afetam. Porém muita coisa mudou. Sentimos os efeitos devastadores das duas grandes guerras, da poluição, do aquecimento global, do buraco na camada de ozônio, da urbanização desordenada, entre outros mais que revelaram uma face do progresso científico que o homem não queria ver. Problemas pragmáticos sérios ainda não foram solucionados, como o câncer e a AIDS que continuam a obscurecer muitas vidas. Dificuldades como estas ajudaram a alimentar o desencanto da sociedade com a ciência. A tensão entre a ciência e o público, iniciada nos anos 60 com o movimento ambientalista, criou novas barreiras à pesquisa que hoje pleiteia empregar células-tronco e clonagem humana "para o bem da humanidade". Não temos mais a mesma impressão otimista e triunfalista criada pela ciência moderna. Além disso, o próprio método científico moderno, inquestionável até então, entrou em xeque após a ascensão da física quântica, das descobertas da teoria geral da relatividade e da entropia. As ciências físicas parecem ter perdido uma linha narrativa que no passado lhes era favorável e estão ligeiramente à deriva, perdendo contato com a realidade, entrando no âmbito da fantasia e da imaginação pura, abstrata, com suas novas dimensões e supercordas.


Estudos de intelectuais como Jean François-Lyotard, Gaston Bachelard e Thomas Kuhn parecem concordar em um mesmo ponto: a queda do véu de infalibilidade científica cria a convicção de que o conceito de ciência, bem como seus métodos, dependem em grande parte das mudanças sociais e ideológicas de sua época. Dessa forma, a ciência torna-se mais aberta para aceitar a história e a filosofia como critérios válidos para a compreensão da realidade.


Não é de se espantar, portanto, que quando a noção de ciência muda, muda também a maneira de se divulgar a ciência. Na verdade, o jornalista científico acaba ficando preso a sua época — e hoje, tudo é mercadoria. As revistas de divulgação científica brasileiras, como maiores representantes da popularização do conhecimento científico no país, não ficam atrás e também apresentam claramente os efeitos da chamada "crise da ciência" em suas pautas e linha editorial voltadas especificamente a atender ao mercado, esquecendo aos poucos seu compromisso social de fonte elucidativa que fala mesmo o que não se quer ouvir.


Definir precisamente com palavras o rumo da ciência e, por conseguinte, do jornalismo científico parece-nos uma tarefa tão difícil quanto, usando os métodos e equações probabilísticas da física quântica, determinar sua trajetória histórica. Afinal de contas, se o próprio conhecimento científico está tão fragilizado e incerto em sua realidade, o que se pode exigir dos jornalistas científicos? À medida que o mundo avança por um século nascido em meio à disputas pelo petróleo, a um clima político divisivo e a desafios cada vez mais sofisticados à vida, parece justo fazer uma pergunta que vai de encontro a séculos de pensamento ocidental. A ciência ainda será capaz de nos dar as respostas que queremos?


Se até então não encontramos resposta, ao menos há o alento da prosa realisticamente perturbadora de Jorge Luiz Borges (EL HACEDOR, 1952):


"Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitação, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto".

Publicado também no Portal do Jornalismo Científico on line